André Carmo DESI - SPGL |
Mérito. Esta é, provavelmente, uma das palavras mais utilizadas por docentes, investigadores e demais trabalhadores do sistema de ensino superior e ciência. O poder desta ideia e, mais do que isso, da racionalidade que encerra em si, reside justamente na sua natureza ubíqua e incontroversa. Hoje, ninguém ousa criticar o discurso meritocrático e a ideia da meritocracia como mecanismo mais adequado para levar a cabo a medição do talento, do esforço e da qualidade do trabalho. O enraizamento institucional desta lógica é de tal forma profundo que, num certo sentido, ela se torna natural e, por isso, invisível e incontestada. Quer se trate de catedráticos ou assistentes convidados, bolseiros de investigação ou leitores, gestores de ciência ou investigadores FCT, poucos se atrevem a questionar os fundamentos da meritocracia. Pelo contrário, inscrevem-na nos seus sistemas de crenças e rapidamente se tornam paladinos da sua defesa. Por conseguinte, a meritocracia perpassa todos os níveis de funcionamento das instituições de ensino superior e ciência e todos aqueles que nelas trabalham assumem, quase sempre com excessiva bonomia, que esta é desejável e vantajosa. Não tendo a pretensão de, neste pequeno texto, desconstruir tão poderosa ideia, muito menos de avançar com uma alternativa consistente e sistematizada que, de uma penada, pudesse substitui-la integralmente, pretendo apenas dar início a uma reflexão crítica sobre a meritocracia enquanto elemento central de um processo mais abrangente de transformação das universidades portuguesas.
Em Against Meritocracy[1], defende-se que em contextos nos quais a mobilidade social se encontra severamente bloqueada, tal como um recente relatório da OCDE demonstra que é o português[2], a meritocracia se tornou um instrumento privilegiado de reprodução do poder e de legitimação da hegemonia cultural do neoliberalismo contemporâneo. Longe de ser neutra e inócua, é uma ideia “armadilhada” que apresenta vários problemas. Se, a partir de apenas dois deles, ensaiarmos uma brevíssima aproximação à situação que se vive hoje em grande parte das universidades portuguesas, obtemos um retrato ilustrativo do modo como a meritocracia se materializa nos discursos e nas práticas quotidianas da academia e os seus efeitos insidiosamente perversos se fazem sentir.
Em primeiro lugar, a meritocracia assenta num sistema “competitivo, linear, hierárquico”, em que a um topo altamente afunilado corresponde uma base de grande amplitude. Esta é, efetivamente, a configuração atual das carreiras académicas (docente e investigação), existindo uma imensa multidão de trabalhadores precários, bolseiros ou contratados a termo, sob cujos ombros se sentam os gigantes, numa lamentável inversão da conhecida expressão newtoniana. A produção científica, cada vez mais volumosa e de melhor qualidade, deve muito a estes trabalhadores que, no entanto, olham para a possibilidade de ingresso numa carreira como uma absoluta miragem. De cima para baixo, os reitores, magnânimos, reiteram constantemente os seus alegados méritos, diminuindo, muitas vezes de forma ofensiva e insultuosa – vide a posição oficial do CRUP relativamente ao PREVPAP[3] – o trabalho altamente qualificado de quem está na base da hierarquia académica.
Em segundo lugar, a meritocracia promove atitudes profundamente egocêntricas que, para além de serem socialmente corrosivas, legitimam a desigualdade, instaurando um estado de permanente competição. Publicar ou perecer. Este é, indiscutivelmente, o alfa e o ómega da ciência contemporânea. Mas só isso não basta. É preciso ser primeiro ou único autor, é preciso publicar em revistas científicas com elevados fatores de impacto, é preciso publicar em inglês, é preciso publicar mais que todos os outros. Mais e mais. Cada vez mais. É preciso também captar investimento, atrair bolseiros e estudantes internacionais, ser bem avaliado pelos alunos e muito, muito mais. Não há tempo a perder! Esta lógica, voraz e auto-flagelante, pois nunca ninguém parece ter qualidade suficiente para cumprir os exigentes padrões cujas metas estão constantemente a distanciar-se, atomiza os académicos, instrumentaliza os laços e as relações interpessoais, em suma, degrada a qualidade das universidades, de um ponto de vista sócio-profissional, e leva à “corrosão do carácter”[4] de todos quantos nelas trabalham.
Quanto mais desigual for uma sociedade, mais intensa e poderosa se torna a “narrativa” meritocrática[5], sendo sobretudo mobilizada pelas camadas ou grupos sociais que se encontram no topo da pirâmide social para, por um lado, acentuar a distinção existente entre si próprios e os outros e, por outro, tornar virtualmente impossível o acesso a um espaço que veem como sendo seu por direito próprio. A universidade, pela sua própria natureza elitista e conservadora, eleva a meritocracia ao paroxismo. Num país onde, como disse recentemente um destacado membro do governo[6], a democracia parece ficar à porta das universidades, a meritocracia opera, em primeiro lugar e sobretudo, enquanto instrumento legitimador da exclusão, enquanto dispositivo que permite gerir a desigualdade.
André Carmo
DESI-SPGL
[1] Littler J (2017) Against Meritocracy: Culture, Power and Myths of Mobility. Routledge, London.
[2] OCDE (2018) A Broken Social Elevator? How to Promote Social Mobility. OCDE, Paris.
[3]http://www.crup.pt/crup/sitecrup/wp-content/uploads/2018/03/Comunicado_Mar%C3%A7o_2018.pdf
[4] Sennett R (2000) The Corrosion of Character: The Personal Consequences of Work in the New Capitalism. W. W. Norton & Company, New York and London.
[5] Mijs J J B (2019) The paradox of inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand. Socio-Economic Review. https://doi.org/10.1093/ser/mwy051
[6] Pedro Nuno Santos, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, numa intervenção feita no dia 7 de janeiro de 2019, no âmbito da Convenção Ensino Superior 2030, que teve lugar no ISCTE-IUL.
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